- Leia sobre corporalidade antes.
Intersexo ou intersex, que significa "sexo intermediário" ou "entre os sexos", é o grupo de todas as pessoas cujas características corpóreas relacionadas a sistema reprodutor estão entre os dois extremos legitimados e normatizados (corporalidade de Sistema Reprodutor Ovariano OU corporalidade de Sistema Reprodutor Testicular).
São pessoas que nasceram naturalmente com anatomia, genética e/ou conjunto hormonal que não se encaixam facilmente nos padrões típicos de pessoa ovariada ou de pessoa testiculada. São pessoas que nasceram naturalmente com: (1) genitais ambíguos, parciais, duplicados ou ausentes, (2) órgãos sexuais internos ambíguos, parciais, duplicados ou ausentes, (3) composição hormonal que difere dos padrões típicos, (4) variações genéticas e cromossomais que diferem dos padrões típicos e (5) caracteres sexuais secundários ambíguos.
Existem mais de 30 categorias diferentes de intersex; alguns exemplos mais comuns são: Insensibilidade Androgênica, Hiperplasia Adrenal Congênita, Variação de Klinefelter, Hipospádia, Variação de Turner, Variação de Swyer, Variação da 5-alfa-redutase, Variação de MRKH, Mosaicismo Cromossomal, Ovotestes, Virilização Induzida por Progestina, Variação de La Chapelle. A proporção de intersex varia muito conforme o tipo: pode ser uma proporção de 1 em 66 nascimentos ou até de 1 em 130,000 nascimentos. Intersexos sofrem as discriminações chamadas intersexofobia e diadismo.
As variações intersexo são formas naturais da biologia humana, porém são patologizadas e marginalizadas.
Pessoas intersexo não são automaticamente trans. Elas podem ser cis ou trans. Intersexo não se refere a gênero, refere-se somente à corporalidade (anatomia, genética e conjunto hormonal).
Bandeiras do orgulho intersexo
[ Bandeira do orgulho intersexo do Brasil ]
Esta foi a bandeira escolhida para representar o orgulho intersexo do Brasil. Se for para falar de intersexos do Brasil, utilizem esta bandeira aqui.
- A cor púrpura representa a ambiguidade, o estar entre as duas categorias de corpos legitimados (os sexos não-intersexo).
- O triângulo representa o Intersexo, porque, na genética, o círculo representa as pessoas nascidas com Sistema Reprodutor Ovariano e o quadrado representa as pessoas nascidas com Sistema Reprodutor Testicular. Então, foi escolhido o triângulo para representar a diversidade intersexo. Também que o formato do genital ambíguo inicial que todas as pessoas têm quando estão no útero lembra um triângulo.
- A cor branca do triângulo representa um canvas branco que pode ser pintado com o gênero da pessoa intersexo, ou seja, o branco representa o gênero (ou a ausência de gênero) da pessoa intersexo, que pode ser de qualquer gênero, porque gênero =/= aparência física ou genital.
- As cores verde e amarela representam o Brasil.
[ Bandeira do orgulho intersexo da Austrália]
Criada em julho de 2013 pela Organisation Intersex International Australia (OII Australia), um grupo de ativismo intersexo da Austrália fundado em 2009. Esta bandeira representa somente intersexos da Austrália e não do mundo inteiro.
Intersexo vs. "hermafrodita"
O termo "hermafrodita" é altamente ofensivo a intersexos, então nunca o use para se referir a intersexos (porque coloca as pessoas intersexo como "não-humanas" ou "menos humanas" e é patologizante). Este termo foi criado com a intenção de se referir a espécies de animais não-humanos que apresentam um sistema reprodutor com função de produzir tanto macrogametas ("óvulos"), quanto microgametas ("espermatozóides"). O termo "hermafrodita" descrevia espécies inteiras e não indivíduos particulares de uma espécie. Hoje em dia, na biologia e na medicina, "hermafrodita" não é mais um termo aceito e diz-se que espécies com essa característica são espécies monóicas. Espécies monóicas são aquelas que apresentam uma única variação reprodutiva entre os indivíduos. Profissionais da área biomédica que ainda usam o termo arcaico "hermafrodita" não são bem-vistes. É a mesma coisa com outros termos biológicos arcaicos como, por exemplo, "carioteca" e "trompas de Falópio". Só que no caso de "hermafrodita", já era duplamente errado, desde o começo, usar esse termo para indivíduos da espécie humana.
"Hermafrodita" originalmente veio de Hermaphroditus, uma divindade da mitologia Grega filha de Afrodite e Hermes. Hermaphroditus era um garoto jovem que teve seu corpo fundido ao de uma ninfa (chamada Salmacis) que desejou nunca mais se separar dele, porque estava apaixonada por ele. Então, Hermaphroditus passou a ser duas pessoas em um só corpo com seios, quadris largos, pênis e testículos.
Genitália intersexo ilustrada e explicada
Tradução e adaptação de um artigo do Dr. Cary Gabriel Costello, homem trans intersexo dos Estados Unidos. As ilustrações são de autoria do Dr. Cary Gabriel Costello.
*Pessoa diádica: aquela que não é intersexo.
*O termo “hermafrodita” é altamente ofensivo a intersexos, nunca use. Ele está nesse texto só para explicar o tratamento que a Medicina dá a intersexos.
Há muita variação no modo que os genitais se desenvolvem em cada pessoa. A natureza nos providencia com um amplo espectro de formas, sobre o qual a nossa sociedade impõe duas categorias absolutas: feminina e masculina. No meu último texto, eu expliquei como todas as pessoas iniciam suas vidas, dentro do útero, com os mesmos genitais, e como o faloclítoris se diferencia durante o desenvolvimento. Neste texto, vou discutir o espectro de formas genitais naturais, explicando como elas se desenvolvem a partir das estruturas faloclitorianas embrionárias.
Irei ilustrar este texto com diagramas simples. Eu sei que há muito interesse em ver genitais intersexo - a maioria das pessoas descobre intersexo a partir de imagens de genitais. Eu discuti em outro lugar a razão de eu não postar fotografias médicas de genitálias de pessoas intersexo - estas fotos geralmente são de crianças que não deram seu consentimento; e eu não vou participar nessa exploração infantil. Entretanto, eu encorajo o impulso das pessoas de querer saber mais a respeito do espectro das formas humanas. Eu quero ajudar a levantar o véu do sigilo imposto pela Medicina que torna nossos corpos invisíveis, a fim de desmistificar os corpos intersexo e torná-los aceitos na sociedade. Então: diagramas.
Vou começar dando uma revisão na nossa forma genital original, mostrando como ela se desenvolve no que se considera como pessoas ovariadas “normais” e pessoas testiculadas “normais.”
---[ Genital embrionário ]---
Nós todes iniciamos nossa vida com genitais com quatro órgãos externos básicos. No topo está a parte numerada com 1 e pintada de rosa no meu desenho: a extremidade sensível do faloclítoris, a qual pode se diferenciar na cabeça do pênis ou na ponta do clítoris. Abaixo, a estrutura 2, em vermelho: corpo do faloclítoris, que pode se diferenciar no corpo do pênis ou no corpo do clítoris e nos pequenos lábios. No centro, a estrutura 3, em verde: membrana uretral, que pode se alargar ou se fechar; forma a uretra e pode formar a vagina. Ao redor, a estrutura 4, em azul: as turgescências labioscrotais (ou labioscroto), que podem se desenvolver nos grandes lábios ou no escroto.
---[ Diferenciação Diádica ]---
Você pode ver aqui como os quatro órgãos externos da genitália embrionária se diferenciam nesses diagramas de genitais “típicos” de pessoa ovariada e pessoa testiculada (ilustrações sem os prepúcios). Note como a glande do faloclítoris (em rosa) aponta para baixo no desenvolvimento de pessoa diádica ovariada e como a glande permanece reta/linear na pessoa diádica testiculada. O corpo do faloclítoris (em vermelho) permanece separado e fica interno aos lábios na pessoa ovariada, enquanto que o corpo do faloclítoris se une em volta da uretra e forma o corpo do pênis na pessoa testiculada.
Variações sexuais ocorrem em muitas formas, mas não são aleatórias. Tipos de intersexo são produzidos por padrões de variação no desenvolvimento de uma ou mais estruturas dentre os quatro órgãos externos da genitália embrionária. Vamos considerar uma série de tipos de intersexo para analisar como essas variações surgem e como são classificadas pela Medicina.
---[ Afalia ]---
“Afalia” é o termo dado pela Medicina para uma forma de variação intersexo produzida quando as primeiras duas partes da genitália inicial não se desenvolvem (o faloclítoris não se desenvolve). Embora isso possa ocorrer na mesma proporção em indivíduos com ovários e em indivíduos com testículos, essa variação só é comentada pela Medicina quando trata-se de pessoa testiculada XY. Isso mostra como a Medicina ocidental é permeada de forte preconceito (machismo). Ter um grande pênis erétil é considerado como uma necessidade para “homens”, e sua ausência é uma tragédia de grau elevadíssimo, a ponto de haver extensos artigos médicos. Ter um clítoris sensível e erétil não é considerado como algo importante - é tão pouco importante que a ausência de clítoris é tratada como algo merecedor de apenas notas de rodapé, quando muito.
As crenças generificadas (de gênero) que permeiam a Medicina Ocidental são também ilustradas pelo plano de tratamento para infantes testiculados que têm afalia. Médiques tipicamente dão a essas crianças intersexo uma cirurgia de transgenitalização para remover os testículos e criar uma vagina, aparentemente sendo impossível tolerar a ideia de criar crianças como meninos se não tiverem pênis. Sem essa castração cirúrgica, a criança poderia crescer fértil, mas sua fertilidade é sacrificada sem seu consentimento. Médiques dizem que crianças com afalia que foram operadas irão crescer com “função sexual feminina normal”. “Normal” para “mulheres”, segundo a Medicina, é definido como ser capaz de receber um pênis na vagina, sem haver prazer sexual.
---[ "Microfalo" ]---
Algumas pessoas têm pés grandes, outras têm pés pequenos. Algumas têm narizes grandes, enquanto outras têm narizes pequeninos. Quando o faloclítoris é bem pequeno numa pessoa com testículos, médiques dizem que o indivíduo tem um “microfalo”. Se os testículos são julgados como “inadequados”, médiques recomendam cirugia de transgenitalização na infância, assim como no caso de afalia, porque a vida enquanto “homem” com órgãos sexuais pequenos é considerada trágica. Novamente, a fertilidade de uma pessoa é sacrificada sem seu consentimento. Se os testículos são julgados como “normais”, a criança pode ser tratada com injeções de testosterona, o que aciona a puberdade na infância e aumenta moderadamente o faloclítoris (juntamente com outros efeitos de puberdade prematura como desenvolvimento de pêlos).
Opções muito raramente consideradas por médiques são: deixar a criança viver sua vida com pênis pequeno e depois decidir por si própria que ação tomar. Se o sacrifício de alguma ou toda sensibilidade sexual e da fertilidade na cirurgia de transgenitalização é melhor que viver enquanto pessoa testiculada com falo pequeno não é uma questão que a ciência pode responder. É uma decisão pessoal e subjetiva, e pode depender também da identidade de gênero que a pessoa tiver. Eu e outres intersexos acreditamos que somente a pessoa intersexo pode fazer tal decisão tão importante, e que a atitude da Medicina impondo suas ideologias numa criança, sem consentimento desta, é tão arrogante quanto cruel.
---[ "Clitoromegalia" ]---
Quando uma criança testiculada tem um grande faloclítoris, médiques fazem brincadeiras, admirando e elogiando a criança. Entretanto, quando a criança tem vulva, ter um grande faloclítoris é julgado como um “defeito de nascimento”. Apesar de não haver qualquer prejuízo funcional em ter um clítoris grande, médiques fazem cirurgia para reduzí-lo e torná-lo “aceitável”. Muito geralmente, essa prática danifica a sensibilidade sexual. Embora, hoje em dia, médiques gostem de se exibir dizendo que preservam a sensibilidade sexual, porque abandonaram o tratamento cirúrgico antiquado de “amputação clitoral”, quase sempre, alguma sensibilidade é perdida nessa “redução clitoriana”, e há vezes em que o faloclítoris perde toda sensibilidade, mesmo que reste algum tecido. É especialmente irônico que a remoção de parte do clítoris na circuncisão tradicional é chamada de “mutilação genital feminina” pela Medicina Ocidental, porém a própria Medicina Ocidental, sem remorso, realiza um procedimento similar nos casos de “clitoromegalia”.
---[ Chordee ]---
A glande do faloclítoris se encurva para baixo, similarmente à configuração de pessoas com vulva. Quando isso acontece em uma pessoa designada homem, é chamado de “chordee simples”. Em algumas pessoas, a única característica atípica é a cabeça do falo recurvada para baixo, enquanto que o pênis tem tamanho típico. Médiques apresentam essa variação como uma “má formação de causa desconhecida”, ao invés de dizer que o faloclítoris tem um formato tipicamente de pessoas com vulva, porque médiques têm aversão a intersexo. Contudo, chordee não é uma variação aleatória do formato do pênis, como se a cabeça do pênis igualmente pudesse se curvar em uma forma de S espontaneamente. Chordee surge quando a estrutura 1 do genital embrionário desenvolve a configuração típica de pessoa ovariada, enquanto que as outras estruturas do genital desenvolvem configuração típica de pessoa testiculada. Médiques sugerem “correção” cirúrgica da curva do faloclítoris com o argumento de que seria difícil para penetrar numa vagina, então seria um desafio à fertilidade. Uma cirurgia como essa oferece um risco tremendo à sensibilidade sexual na cabeça do pênis. Além disso, a fertilidade não é danificada por ter um pênis curvo - a produção de esperma não é alterada. Penetrar pode ser difícil, mas há muitas formas de se participar de atos sexuais e reprodutivos sem precisar penetrar, e apenas quem possui o pênis encurvado pode decidir se faz sentido arriscar a sensibilidade sexual da cabeça do faloclítoris para facilitar o sexo penetrativo com parceires que preferem um pênis reto (algumes parceires preferem encurvado).
Em outres indivídues com chordee, o faloclítoris é de tamanho intermediário. Ele aparece com uma forma intermediária balanceada entre clítoris e pênis. Comumente, a pessoa também tem uma vagina superficial (discutido abaixo em “hipospádia”).
Se indivíduos designados como mulher podem ter a glande do faloclítoris que não se curva para baixo de forma tipicamente de clítoris, mas permanece linear/reta de forma tipicamente de pênis, não se sabe, porque não é discutido na literatura médica Ocidental, a qual é obcecada por pênis e desinteressada por clítoris. Eu considero extremamente provável que ocorra essa forma de chordee.
---[ “Difalia” ]---
Geralmente é esperado que o órgão externo 2 (corpo do faloclítoris) se junte em uma única coluna no desenvolvimento de pessoas diádicas testiculadas, ou que permaneça separado, formando a crura clitoral do desenvolvimento de pessoas diádicas ovariadas. Se o genital se desenvolve seguindo a linha de pessoas com pênis, porém os dois lados do faloclítoris não se juntam, le indivídue nasce com dois meio-faloclítoris separados, lado-a-lado, cada um associado com um testículo e com um corpo cavernoso. Médiques removem cirurgicamente um dos falos (aquele que é julgado como menor, sem supresas), apesar de não haver qualquer dano funcional em ter dois meio-faloclítoris. Essa configuração genital pode estar associada com verdadeiros prejuízos funcionais como ânus imperfurado (não-perfurado), obviamente uma verdadeira emergência médica, mas construir um ânus não tem qualquer relação com remover a metade do faloclítoris. Médiques não consideram difalia como uma variação intersexo, porque consideram como se a criança fosse “masculina em dobro”, mas, na verdade, é intersexo, pois o faloclítoris se desenvolveu de maneira intermediária.
Uma forma mais rara de difalia é a duplicação faloclitoriana, na qual o embrião começa a desenvolver um embrião gêmeo siamês na região genital, mas pára de crescer. É similar aos casos de pessoas com três pernas (uma perna é de ume gêmini siamês que não se desenvolveu). A criança nasce com dois pênis ou dois clítoris, que podem estar lado-a-lado ou um acima do outro.
---[ Hipospádia ]---
Variações físicas nas quais ume infante desenvolve testículos externamente, enquanto que os órgãos 2 (corpo do faloclítoris) e 3 (membrana uretral) se desenvolvem atipicamente. Essas variações são chamadas pela Medicina de “hipospádia”. O órgão 3, a membrana uretral, forma a uretra e pode formar a vagina. Na configuração peniana diádica, a abertura da uretra se encontra na ponta do faloclítoris e não há abertura vaginal. Em indivídues com hipospádia, a abertura uretral se aproxima da configuração típica de vulva diádica, e também pode haver alguma abertura vaginal. Pessoas nascidas com hipospádia, hoje em dia, são quase sempre designadas homens e médiques raramente as chamam de intersexo. Essa é uma escolha ideológica ao invés de uma escolha determinada por lógica anatômica. A Medicina acredita que se uma criança tem testículos externos e o faloclítoris pode ser cirurgicamente reconstruído ao longo da linha peniana, então a criança deve ser designada como homem; e não se diz que é uma variação intersexo à família. Médiques acreditam que ser visto como menos do que “totalmente homem” é insuportável para um homem.
O grau de diferença entre morfologia peniana típica e a variação genital de indivídues com hipospádia muda muito. Em muites, é simplesmente um deslocamento do orifício urinário para uma posição mais abaixo da ponta do pênis, como mostrado na primeira ilustração. Médiques “corrigem” isso na infância, afirmando que ter uma abertura da uretra “deslocada” é inaceitável, pois pode ser razão de bullying, pode causar problemas para urinar de pé e pode dificultar a fertilidade. Perda de sensibilidade na glande do pênis, fístulas e infecções urinárias recorrentes são consideradas, por médiques, como resultados melhores do que ter que talvez urinar em posição sentada. Na fase adulta, muites que fizeram a cirurgia reclamam que os efeitos colaterais prevaleceram sobre os benefícios da cirurgia. A ideia de que a fertilidade seria danificada somente em ter uretra deslocada e emitir o sêmen de uma posição um pouco abaixo é ridícula.
Hipospádia é mensurada por médiques em graus. Quanto maior for o grau, mais o faloclítoris assume uma configuração vaginal. O orifício uretral/urogenital se torna mais parecido com uma vagina com uretra, conforme se distancia da cabeça do faloclítoris, aumentando de tamanho, como pode ser visto nas ilustrações. Se a abertura da uretra está na base do faloclítoris, a variação é chamada de “hipospádia perineal”. Nas pessoas nascidas com essa configuração, a genitália parece intermediária entre vulva normatizada e pênis normatizado, com uma vagina localizada na frente do ou entre o labioscroto. Testículos se localizam no labioscroto, com tecido superficial intermediário entre grandes lábios e escroto. O faloclítoris é geralmente de um tamanho intermediário, com cabeça curvada na configuração típica de clítoris (como em chordee). Apesar de crianças com “hipospádia perineal com chordee” terem genitália ambígua, aproximando-se mais da configuração de vulva, a Medicina Ocidental não classifica “oficialmente” como intersexo; e a cirurgia que fecha a vagina, disseca a base do faloclítoris e reposiciona a uretra para a glande do faloclítoris é chamada de “correção”, ao invés de cirurgia de transgenitalização. Uma cirurgia extensa assim é dolorosa, altera a vida por completo e comumente leva à perda de sensibilidade. Além disso, um bom número de crianças nascidas com essa configuração ambígua e que foram operadas crescem e se identificam como mulheres; e ressentem amargamente que suas vaginas foram removidas.
Raramente mencionado por médiques em artigos sobre hipospádia é o fato de que pode também surgir acompanhada por órgãos sexuais internos ambíguos, como um grande “utrículo protástico” (em pessoas diádicas ovariadas, essa estrutura embrionária se desenvolve em útero; em pessoas diádicas testiculadas, ela se desenvolve em uma pequena estrutura no centro da próstata; utrículo = órgão com formato de saco/bolsa que é homólogo ao útero). Em corpos intersexo, isso pode existir como uma pequena estrutura dentro da próstata ou perto da próstata, ou, conforme a elevação do grau da hipospádia, pode existir como um utrículo de tamanho médio ou de tamanho grande. É fascinante o fato que pessoas com hipospádia geralmente têm uma estrutura uterina, evidente em qualquer literatura sobre utrículo protástico, mas isso é raramente mencionado nas descrições médicas de hipospádia. Eu acredito que não é mencionado, porque discutir uma estrutura uterina enfraqueceria a concepção médica de que crianças com hipospádia seriam “meninos com má formação peniana” ao invés de crianças intersexo.
---[ Agênese Vaginal ]---
Em alguns indivíduos, a genitália é formada de modo próximo à configuração de pessoa diádica ovariada, mas o órgão 3 (membrana uretral) cria apenas uma vagina superficial ou um “remendo” de tecido que pode se lubrificar. Internamente, pode não haver gônadas, ou pode haver ovários, mas não útero, ou pode haver ovários e um útero atípico. Indivíduos com agênese vaginal são sempre chamados de “mulheres” e nunca de intersexo pela Medicina, até mesmo quando não têm gônadas e não irão desenvolver características sexuais secundárias (como presença/ausência de seios ou presença/ausência de pelos faciais) exceto se tomarem hormônios. Novamente, a ideologia da Medicina Ocidental tenta fugir ao máximo do intersexo.
Há muita atenção dada por médiques à criação de vagina em crianças que têm vulva superficial (têm clítoris e lábios, só não têm canal vaginal profundo). Argumenta-se que é uma necessidade para a função sexual, como se apenas a penetração vaginal fosse realmente um ato sexual, enquanto que outras formas de contato sexual não seriam “verdadeiramente sexo”. Como é o caso de outros corpos intersexo, cirurgias são comumente realizadas, mesmo que prejudiquem a sensibilidade sexual, só por causa da ideologia do sexo penetrativo como o único “sexo normal.”
---[ Hiperplasia Adrenal Congênita ]---
Em algumas variações intersexo, os quatro órgãos primordiais da genitália se desenvolvem de modo que parecem muito com a configuração típica de pênis (com orifício da uretra na ponta, com escroto e sem abertura vaginal), mas a pessoa tem útero e ovários e o escroto não tem testículos. O diagnóstico mais comum é Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) em indivídues XX. Enquanto que qualquer pessoa diria que ter pênis e útero é uma variação intersexo, a Medicina esperneia e diz que, ao invés de intersexo, é “pseudohermafrodita” (falsamente “hermafrodita”), querendo dizer que, de algum modo, ainda é “mulher”. Isso é baseado na jogada da Medicina há quase um século atrás: definir as variações intersexo fora da existência, dizendo que apenas indivídues com a raríssima condição de ter um ovário e um testículo simultaneamente ou com ovotestes (gônadas que têm tecido ovariano e tecido testicular simultaneamente) seriam “verdadeiramente hermafroditas.” Pessoas intersexo com testículos são consideradas como “homens, na verdade” e pessoas intersexo com ovários são consideradas como “mulheres, na verdade”, através da criação do termo “pseudohermafrodita” pela Medicina.
Na época em que médiques haviam criado a ideologia de “pseudohermafrodita”, a cirurgia transgenitalizadora ainda não havia sido desenvolvida. Hoje em dia, contudo, médiques insistem que bebês com HAC devem ser operades cirurgicamente. O termo “pseudohermafroditismo feminino” é usado para acalmar a família que estaria chocada com a ideia de médiques cortando o pênis de sua criança. Médiques dizem para a família que “não é verdadeiramente um pênis, mas é um clítoris deformado.” O fato é que todes bebês têm faloclítoris - e que o faloclítoris dessa criança do exemplo é um pênis típico. Se médiques fossem consistentes, teriam que chamar todos os falos XY de “clítoris deformados.”
De qualquer forma, médiques rotineiramente realizam o que chamam de “redução clitoriana” em bebês com HAC - isto é, a remoção de quase todo falo e o corte do escroto para dividir no meio e dar a impressão de grandes lábios. Para pressionar a família a aceitar a realização dessa cirurgia (que na verdade é uma cirurgia de transgenitalização), médiques apresentam à família uma estranha avaliação de riscos e benefícios. Médiques escondem o fato de que cortar a maior parte do faloclítoris causa um impacto sério na sensibilidade sexual. Dizem à família que isso deve ser feito para evitar a catástrofe de uma menstruação através do falo (note que médiques não informam à família de crianças com hipospádia perineal que menstruação é um “perigo”). Médiques não informam à família que uma alternativa seria tratamento hormonal para suprimir menstruação, e nem que a criança pode crescer e se identificam como homem. Ao invés de avisar à família que muitas crianças com HAC crescem e não se identificam como mulheres, desesperando-se por terem sido efetivamente castrades, médiques avisam que as crianças “têm um risco de se tornarem lésbicas”, o que é uma declaração falsa e homofóbica e que ignora a questão da identidade de gênero.
---[ Insensibilidade Androgênica ]---
Crianças com insensibilidade androgênica completa (IAC) são contrapartes das crianças XX com HAC. A genitália externa tem configuração típica de vulva diádica, mas, internamente, não há útero e no lugar que tipicamente haveria ovários, há testículos internos. Porque seus corpos não respondem à testosterona, desenvolvem-se com características sexuais secundárias comuns de pessoas diádicas ovariadas, mas sem haver menstruação. Apesar da aparência típica de pessoas ovariadas, médiques chamam tais indivídues de “pseudohermafroditas masculinos”, porque têm testículos. Entretanto, em contraste com o “tratamento” para crianças com HAC, médiques não chegam e dizem que as crianças com IAC têm “pênis deformados” que precisam ser cirurgicamente “corrigidos” para encaixar no padrão de “sexo verdadeiro.” Ao invés disso, dizem à família para criar a criança com IAC como menina, avisam à família que os testículos internos podem ser um risco de câncer, então dizem para remover os testículos.
Ao contrário de pessoas com HAC, que comumente se sentem muito mal por causa da cirurgia transgenitalizadora não-consentida, indivídues com IAC usualmente aceitam que foram designades como meninas no nascimento. Isso é provavelmente devido ao contraste nas vivências de cada intersexo. Crianças com HAC são designadas como meninas no nascimento via cirurgias traumáticas que danificam a sensibilidade sexual e, então, precisam tomar drogas supressoras de testosterona a vida inteira, enquanto que aquelus com IAC podem não descobrir que têm IAC até a puberdade, mantendo a genitália inalterada, e não tomam drogas supressoras de hormônios. Contudo, apesar de se identificarem como mulheres, tais indivíduos são taxados como “pseudohermafroditas masculinos” em todos os registros médicos e precisam viver o resto de suas vidas com as consequências de serem considerades como homens pela Medicina.
Algumas crianças têm Insensibilidade Androgênica Parcial (IAP). Elas podem nascer com um espectro de diferentes formas faloclitorianas, desde formas próximas do padrão testicular diádico, incluindo formas de “hipospádia perineal com chordee” e até formas próximas do padrão ovariano diádico. A maioria apresenta uma forma ambígua e recebe cirurgia transgenitalizadora não-consentida para uma das normas diádicas (ovariana ou testicular). Como sempre, tal cirurgia é traumática, dolorosa, não resulta em uma genitália considerada “totalmente normal” e danifica a sensibilidade sexual. Isso provavelmente explica a razão de muitas pessoas com IAP não viverem o gênero que lhes foi designado.
---[ Variações Intersexo que não foram ilustradas aqui ]---
Muitos corpos diferem do padrão diádico de maneiras que não são visíveis externamente, então são raramente diagnosticados no nascimento, como, por exemplo, as variações nos cromossomos sexuais. Contam-nos que “homens são XY e mulheres são XX”, porém, além de haver homens trans XX e mulheres trans XY, também há pessoas intersexo XX com configuração testicular e pessoas intersexo XY com configuração ovariana, de modo que não dá pra distinguir visualmente de pessoas diádicas. Há muites indivídues com cromossomos XXY (variação chamada de Klinefelter) com genital típico de padrão testicular, mas com testículos pequenos - cerca de 1 em 500 pessoas designadas homens têm esse cariótipo intersexo. Pessoas geralmente só descobrem que são XXY quando fazem testes devido à infertilidade, ou às vezes nos casos em que desenvolvem seios. Outra variação genética comum é o cromossomo X único, sem um cromossomo sexual secundário (X0), a qual médiques chamam de “síndrome de Turner.” Ter apenas 45 cromossomos ao invés dos 46 usuais é associado com uma gama de prejuízos físicos, e o fato de que as gônadas nunca se desenvolvem é tratado como um desafio secundário em função dos outros desafios físicos e neurológicos.
Outras variações intersexo existem em um nível mais alto do que cromossomos, mas são internas, então podem permanecer despercebidas durante anos ou durante a vida toda. Incluídas nisso, ironicamente, são as únicas variações consideradas como “hermafroditismo verdadeiro” pela taxonomia médica: a presença de ovotestes, ou, mais raramente, a presença de um ovário e um testículo na mesma pessoa.
Também há pessoas com um balanço dos hormônios estrógenos, progesterona, testosterona e outros andrógenos fora do padrão diádico. Todo mundo produz estes hormônios e necessita deles para fertilidade e saúde física; a diferença é que pessoas ovariadas diádicas têm tipicamente certos hormônios (estrógenos e progesterona) em maior concentração no organismo, enquanto que pessoas testiculadas diádicas têm tipicamente outros hormônios (testosterona e outros andrógenos) em maior concentração. Variações no balanço usual leva pessoas com sistema reprodutor ovariano a ter mais pelos no corpo e na face que a média, mais massa muscular que a média, maior chances de ficar com calvície que a média, maior libido que a média; enquanto que pessoas com sistema reprodutor testicular desenvolvem peitos maiores que a média, quadris mais largos que a média, etc. Essas variações não são consideradas intersexo pela Medicina, mas não há realmente razão para não serem. A característica intersexo lhes é negada, porque a maioria das pessoas adultas com essas variações tem identidades de gênero que cisnormativamente “combinam” com os genitais que têm. Eu concordo e reafirmo que a identidade de gênero de ninguém deveria ser considerada prejudicada só pela aparência física. Ao mesmo tempo, Eu acredito que ajudaria muito as pessoas de genitais não-normativos, de gêneros não-normativos e trans se a sociedade e a instituição médica reconhecessem a prevalência das variações físicas fora do padrão relacionada a genitais e sist. reprodutivo e, ao mesmo tempo, apoiassem indivídues em suas identificações de gênero. Algumes ativistas intersexo discordam e querem limitar o que “conta” e não “conta” como intersexo, excluindo certas pessoas. Pessoalmente, eu acho isso cruel e contraprodutivo. Uma mulher cis com barba vive sua vida com sua variação física bem visível; dizer que ela não pode ser incluída numa comunidade de pessoas com variações físicas, só porque ela tem uma genitália típica ovariada não faz o menor sentido pra mim.
Outra categoria de variações relacionadas a hormônios sexuais inclui indivídues que produzem níveis baixos de hormônios e cuja aparência física não muda depois da puberdade (a aparência fica andrógina). Tais crianças quase sempre recebem terapia hormonal, sem que tenham chance de escolher a alternativa de viver suas vidas em corpos andróginos inalterados (enquanto isso, terapia hormonal é negada para adolescentes trans que desejam suprimir certos hormônios sexuais, como testosterona, para que tenham a aparência física que desejam).
Digo que esse catálogo de formas corpóreas intermediárias não é limitante. No meu entendimento, qualquer pessoa que tenha aparência física fora do padrão diádico É intersexo e não deve ser excluída da sua categoria intersexo através de malabarismos de terminologias que a Medicina faz, assim como também não deve ser excluída da comunidade intersexo por “gatekeepers” (participantes da comunidade que tentam barrar a inclusão).
Precisamos que a sociedade e a instituição médica reconheçam que a natureza providencia um amplo espectro de formas à humanidade, para que todos os nossos corpos possam ser reconhecidos como válidos. A menos que haja um raro prejuízo funcional (como imperfuração do ânus/da uretra), nossos corpos não deveriam ser alterados na infância. Nossos corpos deveriam ser alterados somente quando nós requisitassemos com consentimento, para NÓS ficarmos confortáveis dentro de nossa própria pele, e não para que a sociedade se sinta confortável com nosso apagamento pela Medicina. A sociedade deve abraçar a diversidade, que é uma dádiva da natureza.